InícioA sessão inaugural

A sessão inaugural

(Fonte: http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/id?id=01162)


Citado de RÊGO, Raúl. História da República. Prefácio de Mário Soares. Lisboa: Círculo de Leitores, 1986.


"Desde as oito da manhã de Segunda-feira, 19 de Junho de 1911, que a multidão começa a circular nas ruas que conduzem ao antigo mosteiro de S. Bento, destinado desde 1834 para Palácio das Cortes da monarquia liberal. O comércio fechou. Apenas raros recalcitrantes, que depressa os populares convertem, ousam abrir os estabelecimentos. As fábricas não trabalham. As repartições públicas não funcionam. As bandeiras vermelhas e verdes da República flutuam, numerosíssimas, ao vento. A antiga Avenida D. Carlos, hoje Avenida das Cortes, por onde subiam com os seus sumptuosos coches de gala os cortejos reais das sessões solenes da abertura do Parlamento, está decorada com modestos arcos de triunfo. Os navios de guerra que ficaram no Tejo empavezavam em arco, festivamente, com os pavilhões republicanos nos topes. As tropas começavam a desfilar através da cidade, vestindo todos os regimentos o uniforme de serviço. Os improvisados batalhões voluntários passam, ao som de cornetas e tambores. () O povo ocupa agora o primeiro plano da cena histórica que vai representar-se. () A multidão ocupa as imediações do velho convento cisterciense () Uma animação impressionante agita agora os vinte mil espectadores que se comprimem na vasta área circunvizinha do Congresso. As músicas tocam ininterruptamente a Portuguesa, e à medida que vão chegando a S. Bento, os ministros e os caudilhos populares da República são freneticamente vitoriados pelo povo. Salvas de palmas soam, de momento a momento com estridência. Foguetes estoiram nos ares de um azul turqueza. O ministro da Justiça, vindo do Monte Estoril, onde está convalescendo, é saudado em todo o percurso numa crise contagiosa e delirante de entusiasmo. Pálido, emagrecido pela doença, com o pescoço abafado por uma cache-col de seda branca, o Dr. Afonso Costa agradece e sorri. É evidente que o detentor das simpatias populares da Lisboa jacobina é ele agora. () São onze horas. O presidente do município de Lisboa, o antigo par do reino Anselmo Braamcamp Freire, que, na reunião preparatória do Congresso os deputados nomearam para presidir à sessão legislativa das Constituintes, ocupa, sob a maquette ainda húmida do busto monumental da República, a presidência." (DIAS, Carlos Malheiro, "Ciclorama crítico de um tempo") "Onze em ponto. Um contínuo vai colocar na tribuna da presidência, à direita, uma bandeira nacional de seda. Entretanto vão chegando outros deputados, trocam-se afectuosas saudações em cada rosto é patente o júbilo que a todos inunda. (...) Às onze e vinte, Anselmo Braamcamp Freire, presidente da Junta Preparatória, sobe à presidência com os dois secretários, Miranda do Vale e Carlos Calisto, e agita a companhia, convocando os deputados a reunir na sala, que é invadida, de súbito. Dez minutos depois, entra o ministro da Justiça pelo braço do ministro dos Estrangeiros. (...) Na bancada ministerial acha-se todo o Governo provisório, à excepção do presidente e do ministro do Interior. Os ministros da Justiça, Finanças e Estrangeiros trajam casaca; os da Guerra, Marinha e Fomento vestem as suas fardas oficiais. (...) Com a máxima clareza, quase martelando as palavras, Anselmo Braamcamp Freire mal dissimula a comoção ao ler o seguinte: A Assembleia Nacional Constituinte, confirmando o acto de emancipação realizado pelo povo e pelas forças militares de terra e mar, e reunida para definir militares de terra e mar, e reunida para definir e exercer a consciente soberania, tendo em vista manter a integridade de Portugal, consolidar a paz e a confiança e o bem-estar e progresso do povo português proclama e decreta: 1.º Fica para sempre abolida a monarquia e banida a dinastia de Bragança; 2.º A forma de governo em Portugal é a República democrática; 3.º São declarados beneméritos da Pátria todos aqueles que para depor a monarquia heroicamente combateram até conquistar a vitória, consagrando para todo o sempre, com piedoso reconhecimento a memória dos que morreram na mesma gloriosa empresa. (...) As palmas estrugem, os vivas soltam-se de todas as bocas, mas o presidente pede, com um gesto que se restabeleça o silêncio e convida a Assembleia a manifestar-se sobre o decreto: "Os senhores deputados que aprovam queiram conservar-se de pé." Ninguém se senta e Braamcamp Freire declara solenemente: "Está aprovado por unanimidade". (RÊGO, Raúl, "História da República") Nesta histórica sessão decreta-se sobre a bandeira (depois de vivas discussões nos meses anteriores sobre os diferentes projectos) e sobre o hino nacional (A Portuguesa, nascido, letra e música no contexto do Ultimatum de 1890).